Aniversário meu

 No tempo em que comemoravam o dia dos meus anos

Se entretanto,  a memória não se adulterou, foi um tempo residual 

Há  muitos séculos que não sopro  velas no topo do bolo. 

E o que é isso? Importantíssimo? 

Nunca houve essa tradição nem nasceu comigo, 

chegou  mais tarde

Nem eu era feliz, 

fechada na  incompreensão dos que tinham o meu sobrenome 

A tia que nunca tinha amado o tio 

E que maldizia tê-lo conhecido na juventude 

quando ele apaixonado aguardava por ela 

 à porta da igreja

Trazia o bolo com velas acesas de alegria nervosa 

e eu diluia a reduzida  chama a nada, num sopro tímido 

com  lábios grossos 

Ninguém  estava morto

Os tios e as tias riam às gargalhadas e eu séria...

As vezes até  parecia que se riam de mim. 

Naquela altura repetia o que me haviam ensinado

Precocemente deixei de o fazer, sem saber que tão cedo 

me tinha apercebido que tinha muita verdade nos olhos

no coração e na boca. Mas eu não sabia o que estava a acontecer 

Nunca tive a grandeza de ser inteligente na família 

essa coroação passou para outras cabeças  familiares 

Eu tive a saúde de perceber o contraditório, a maldade... 

o dia dos meus anos festejado  para  paradoxalmente 

 ouvir que não devia ter nascido, não era ainda...seria outra não eu

ninguém se lembrou disso. Não sabiam de ciência,  nem eu

As esperanças que tinham não eram as minhas

Queriam por mim, sonharam por mim. 

Mas eu sabia que não podia ser assim 

Assim eu estaria contra mim. 

Não podia seguir as esperanças dos outros 

Tinha de seguir o meus próprios passos

Os espinhos que se enterraram nos pés 

 colocaram lá  de propósito

Para me ferir a alma mas também não sabiam que doía 

Quando ainda  festejavam o dia dos meus anos 

Aos fins de semana,a casa da avó  cheia

Tios, tias, primos, primas ...

Diálogos pródigos , a avó viúva, no entanto, muito viva

 fora do dia dos meus anos

A cabeça depositava no colo da ancestralidade 

O cheiro do avental 

As leituras  bíblicas

As estações passavam devagar

Tranquilamente,  no seu tempo

E eu sempre com a cabeça depositada no colo da avó 

Sempre ali, embebida naquela ternura

Muitos anos passaram 

Cresceram - me os membros,  

eu não era a mesmo, a avó também não 

Quando a avó adoeceu, ficou uma adorável velhinha, 

a azáfama da casa murchou, 

A despedida da  grande matriarca

Chamados um por um , 

Ao quarto,  o abraço, o  perdão

Um adeus assim  é muito forte

Bem antes de perder a visão 

soube logo, que aquela morte tinha sido o fim da minha proteção 

 Depois mudaria tudo para sempre 

E assim foi. 

Venderam a casa e compraram desentendimentos 

A grande matriarca deixou a cadeira vazia 

O lugar solitário 

Os afastamentos, as fugas, os isolmentos de parentesco

Tiveram lugar

Aos poucos se arredaram, outros desaparecendo  na sua vez

Não os vejo, já quase não os reconheço 

De todos os muitos  tios e tias 

, a última  sobrevivente permanece 

e a sua alegria está viva

Fui revisitar as casas onde habitei

Não encontrei senão ruas sem ninguém 

Escombros... novas erguidas

Havia o desejo de saber como tudo tinha sobrevivido

As  avós que eu amava

E sigo amando minha mãe

A tia, foi figura central da casa

Recordo nitidamente a sala da segunda casa da avó 

A que habitei com a minha vida

A mesa grande em mármore com a jarra a meio, 

O aparador com fruteiras de tamanhos diversos,

A louça muito fresca e bem arejada

O canapé onde cabiam três de nós 

Ainda vejo os reflexos , o cheiro da limpeza. 

Ouço os risos, as risadas, a tenda no terraço,  

As adivinhas  da casa amarela com portas azuis

Algumas memórias são como pedaços acesos de lua cheia 

Umas vivas e luminosas, outras apagadas 

O meu coração segue sereno 

Sem culpas, nem remorsos,  nem omissões 

Conheço-me por inteiro

A cabeça curada, as emoções arrumadas 

Até aos cantos mais secretos 

E se algo me escapa é porque se perdeu no pó do tempo. 

Convivo bem com a minha idade.

Há  seculos que não festejo o dia dos meus anos

E isso não me traz saudade 

O mundo não gira à minha porta 

Estou em paz , caminho tranquila 

Apesar das agulhas das abelhas que muito me picam

Todavia,  minha mãe salva a minha vida 

E eu salvo a vida de minha mãe. 


(Inspirado no poema de F.P. " No tempo em que festejavam o dia dos meus anos " 



Comentários

  1. Lindíssimo de ler, mas de confranger o coração. O que importa depois é ser uma pessoa bem resolvida e de bem com a vida ano após ano, ainda que não se comemore os anos.
    Parabéns!

    Beijinhos

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